Antes da pandemia a agenda do sector energético era dominada por temas relacionados com a descarbonização da economia. Na perspectiva de Nuno Pignatelli, vice-presidente da Accenture Portugal, a doença só veio acelerar de forma muito significativa algumas das mudanças a que já estávamos a assistir (pelo menos na União Europeia). Assim, ao nível das fontes de energia, o responsável pelas áreas de Energia, Utilities & Recursos Naturais da Accenture antecipa um acelerar da substituição de combustíveis fósseis por energias renováveis. Aliás, a União Europeia está a traçar um objectivo claro para que a reconstrução após a pandemia da COVID-19 seja baseada em energias renováveis, destacando-se a este nível a energia solar e o hidrogénio verde.
Executive Digest: A pandemia da COVID-19 é uma crise a nível global com elevadas repercussões económicas em todos os sectores de actividade. De acordo com a sua leitura, qual o principal impacto do vírus no sector da Energia?
Nuno Pignatelli: O sector da Energia divide-se em duas indústrias: a indústria do Oil & Gas e a das Utilities. Dadas as suas particularidades, os impactos da COVID-19 em cada uma delas foi bastante diferente. A indústria do Oil & Gas é composta pelas actividades de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural (Upstream), pela Refinação de Produtos Petrolíferos e finalmente pela sua Distribuição e Comercialização a Clientes Domésticos (B2C) ou Empresariais (B2B). Os "grandes clientes/consumidores" desta indústria são o sector dos transportes (automóvel e de mercadorias), as companhias de aviação e a indústria. No contexto das empresas portuguesas, a nossa referência de mercado é a Galp.
Com o lockdown quase total das maiores economias mundiais, a paragem abrupta da utilização de transportes terrestres e a redução das actividades ao nível da aviação, a indústria de Oil & Gas deparou-se com um "choque na procura". Em paralelo ao tema COVID, no princípio de Março iniciou-se uma "guerra de preços" entre a Rússia e a Arábia Saudita que levou a uma queda brusca e muito acentuada do valor do petróleo, o que fez com que todas as actividades da cadeia de valor fossem postas à prova.
Em termos da Exploração e Produção de Produtos Petrolíferos os valores de Petróleo no mercado baixaram de cerca de 60$/barril, em Janeiro, para 18$/barril, em Abril, situação esta que fez com que várias empresas, face aos novos preços de mercado, deixassem de ter capacidade para cobrir os seus custos de produção, tendo algumas delas entrado em insolvência (como são os casos as americanas Chesapeake Energy e Whiting Petroleum). No que respeita ao negócio da Refinação de Produtos Petrolíferos as receitas foram substancialmente afectadas devido ao facto de não se conseguir escoar a produção - devido à quebra na procura, muitas refinarias tiveram de suspender a sua produção para evitarem o colapso da armazenagem (em finais de Abril havia várias zonas do globo onde a armazenagem estava acima de 90% da sua capacidade). Finalmente no que respeita à Distribuição e Comercialização, embora a margem unitária tenha melhorado fruto do decréscimo do preço do petróleo nos mercados, os volumes de vendas baixaram substancialmente e de forma muito abrupta, sobretudo no segmento B2C (transportes particulares) e na Aviação, o que fez com que as contas de resultados deste sector também fossem bastante impactadas.
Efectivamente, podemos mesmo afirmar que a indústria de Oil & Gas foi uma das mais afectadas por esta pandemia, só ultrapassada em prejuízos pelas indústrias de Travel e Commercial Aerospace.
Já no que diz respeito à indústria das utilities, embora os efeitos da pandemia de COVID-19 não sejam tão severos, também se está a sofrer em termos de operação e resultados.
Esta indústria compreende as actividades de Produção/Geração de Electricidade, o Transporte e Distribuição de Electricidade e Gás Natural e a sua Comercialização. Os seus clientes/consumidores são os Clientes Domésticos de Eletricidade e Gás Natural (B2C) e os Clientes Empresariais (B2B) que são constituídos por Pequenas e Médias Empresas, Hospitais, Cadeias de Hotelaria, Entidades Estatais, Indústria, entre outros. Nesta área temos como empresas de referência a EDP (nas actividades de Geração e Distribuição de Electricidade e Comercialização de Electricidade e Gás Natural), a REN (no Transporte de Eletricidade e Gás Natural) e a Galp (na Distribuição de Gás Natural e na Comercialização de Electricidade e Gás Natural).
Ao nível da Produção/Geração de Electricidade, também devido à paragem/ interrupção de actividades em várias indústrias, verificou-se uma quebra na procura o que, aliado à redução do preço do petróleo nos mercados, levou a uma redução da receita (menos volume e menos preço). Nas actividades de Transporte e Distribuição, embora os impactos tenham sido mais reduzidos, verificaram-se algumas situações que impactaram o negócio e a conta de resultados - por exemplo, uma das fontes de receita das distribuidoras eram as actividades de cortes e religações que, com as moratórias concedidas pelo Governo durante esta fase de pandemia deixaram de se realizar.
Finalmente ao nível da actividade de Comercialização, sentiu-se uma redução de vendas no segmento B2B (em termos de volumes) e uma redução generalizada da actividade comercial no segmento B2C (vendas, angariação de novos clientes, entre outros), muito baseada em vendas presenciais (lojas e door-to-door) - esta situação pandémica está a "forçar" a transição digital nestas empresas, por exemplo, através da necessidade de reforço dos canais de vendas digitais e do aumento do investimento em marketing digital.
Ainda na área comercial os problemas relacionados com dívida começaram também a generalizar-se: no segmento B2B foram vários os clientes que começaram a negociar acordos de pagamento, enquanto que no segmento residencial muitos aderiram às moratórias do Governo português, adiando os pagamentos relacionados com facturas de gás e electricidade.
ED: O que é que esta pandemia vai impactar no que respeita à agenda do sector?
NP: Antes da pandemia a agenda do sector era dominada por temas relacionados com a descarbonização da economia. E, na minha perspectiva, a pandemia só veio acelerar de forma muito significativa algumas das mudanças a que já estávamos a assistir (pelo menos na União Europeia). Ao nível das fontes de energia antecipa-se um acelerar da substituição de combustíveis fósseis por energias renováveis - a União Europeia está a traçar um objectivo claro para que a reconstrução após a pandemia da COVID -19 seja baseada em energias renováveis, destacando-se a este nível a energia solar e o hidrogénio verde.
Numa perspectiva do consumo sentimos também alterações profundas e que estão relacionadas, por exemplo, com as mudanças na forma como trabalhamos. Mesmo depois de haver uma vacina ou um tratamento para este vírus, não é expectável que o número de viagens de trabalho volte alguma vez a ser o que era anteriormente - a este nível posso dizer-lhe que antes da pandemia eu viajava entre duas a três vezes por mês para Madrid, e duas a três vezes por ano para o EUA e que nesta altura tenho a certeza que, mesmo após esta situação estar controlada, não irei voltar a viajar com a mesma regularidade. O teletrabalho veio em força, e a verdade é que os resultados têm sido excepcionais.